A Relação Entre Microbiota Intestinal e Doenças Autoimunes:
Mecanismos e Intervenções
João Vitor Almeida Costa¹, Ana Beatriz Ferreira Lopes¹, Marcos Antônio Rodrigues Silva¹
REVISÃO DE LITERATURA
RESUMO
A microbiota intestinal tem um papel fundamental na modulação do sistema imunológico e na
manutenção da homeostase. Alterações na composição microbiana, conhecidas como disbiose,
estão associadas ao desenvolvimento de doenças autoimunes, como artrite reumatoide,
esclerose múltipla e diabetes tipo 1. Este artigo revisa os mecanismos pelos quais a microbiota
influencia a imunidade, incluindo a promoção de tolerância imunológica através de metabólitos
bacterianos e a ativação de respostas inflamatórias em caso de disbiose. Intervenções
terapêuticas, como o uso de probióticos, transplante de microbiota fecal e modulação dietética,
são discutidas como estratégias para restaurar o equilíbrio microbiano e tratar doenças
autoimunes. Apesar do potencial promissor, desafios persistem na tradução dessas abordagens
para a prática clínica, exigindo pesquisas adicionais e desenvolvimento de terapias
personalizadas. Conclui-se que a compreensão aprofundada da relação entre microbiota e
autoimunidade é essencial para o avanço de intervenções eficazes e seguras.
Palavras-chave: Microbiota intestinal; Doenças autoimunes; Disbiose; Imunomodulação;
Intervenções terapêuticas.
The Relationship Between Gut Microbiota and
Autoimmune Diseases: Mechanisms and Interventions
ABSTRACT
The gut microbiota plays a fundamental role in modulating the immune system and
maintaining homeostasis. Alterations in microbial composition, known as dysbiosis, are
associated with the development of autoimmune diseases such as rheumatoid arthritis,
multiple sclerosis, and type 1 diabetes. This article reviews the mechanisms by which the
microbiota influences immunity, including the promotion of immune tolerance through
bacterial metabolites and the activation of inflammatory responses in cases of dysbiosis.
Therapeutic interventions, such as the use of probiotics, fecal microbiota transplantation,
and dietary modulation, are discussed as strategies to restore microbial balance and treat
autoimmune diseases. Despite the promising potential, challenges remain in translating
these approaches into clinical practice, requiring further research and the development of
personalized therapies. It is concluded that a deep understanding of the relationship
between microbiota and autoimmunity is essential for advancing effective and safe
interventions.
Keywords: Gut microbiota; Autoimmune diseases; Dysbiosis; Immunomodulation; Therapeutic
interventions.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0
International License.
INTRODUÇÃO
A microbiota intestinal humana, composta por trilhões de microrganismos, desempenha um papel
crucial na manutenção da homeostase imunológica e metabólica do hospedeiro (BELKAID; HAND,
2014). Nos últimos anos, evidências crescentes têm demonstrado a influência significativa da
microbiota na modulação do sistema imunológico, sugerindo uma relação íntima entre desequilíbrios
microbianos e o desenvolvimento de doenças autoimunes (ROUND; MAZMANIAN, 2009; CLEMENTE
et al., 2012). Doenças como artrite reumatoide, esclerose múltipla e diabetes tipo 1 têm sido
associadas a alterações na composição microbiana intestinal, indicando que intervenções
direcionadas à microbiota podem representar novas oportunidades terapêuticas (KNIP; SILJANDER,
2016; BERER et al., 2017).
A interação entre a microbiota intestinal e o sistema imunológico é complexa e bidirecional.
Microrganismos comensais podem promover a diferenciação de células T regulatórias, essenciais para
a tolerância imunológica, enquanto alterações na composição microbiana podem levar à ativação
aberrante do sistema imunológico e à autoimunidade (ARPAIA et al., 2013; BELKAID; HARRISON,
2017). Fatores como dieta, uso de antibióticos e infecções podem alterar a microbiota,
desencadeando respostas inflamatórias que contribuem para a patogênese de doenças autoimunes
(CHO; BLASER, 2012; KOREN et al., 2012).
Compreender os mecanismos pelos quais a microbiota influencia o desenvolvimento de doenças
autoimunes é essencial para o desenvolvimento de novas intervenções terapêuticas. Estudos recentes
têm explorado o potencial de probióticos, prebióticos e transplante de microbiota fecal como
estratégias para restaurar o equilíbrio microbiano e modular respostas imunológicas (BURRELLO et al.,
2018; MANFREDO VIEIRA et al., 2018). Além disso, a identificação de espécies bacterianas específicas
associadas à proteção ou ao risco de autoimunidade abre caminho para abordagens personalizadas
(PIANTA et al., 2017; MAEDA; TAKEDA, 2017).
Diante disso, este artigo tem como objetivo revisar os principais mecanismos pelos quais a microbiota
intestinal influencia o desenvolvimento de doenças autoimunes e discutir as intervenções
terapêuticas emergentes. Serão abordadas evidências atuais que elucidam essa relação e perspectivas
futuras para o manejo e prevenção de doenças autoimunes através da modulação da microbiota
intestinal.
METODOLOGIA
Para a realização desta revisão, foi conduzida uma pesquisa bibliográfica abrangente em bases de
dados eletrônicas, incluindo PubMed, SciELO e Web of Science, abrangendo publicações até
setembro de 2021. A estratégia de busca utilizou os seguintes termos em português e inglês:
"microbiota intestinal" OR "gut microbiota", "doenças autoimunes" OR "autoimmune diseases",
"mecanismos" OR "mechanisms", "intervenções" OR "interventions", combinados com os operadores
booleanos AND e OR.
Critérios de inclusão
Artigos publicados entre 2009 e 2021.
Estudos que abordassem a relação entre microbiota intestinal e doenças autoimunes.
Publicações em língua portuguesa ou inglesa.
Artigos disponíveis na íntegra.
Estudos originais, revisões sistemáticas e meta-análises.
Critérios de exclusão
Estudos que não enfocassem diretamente a relação entre microbiota e autoimunidade.
Artigos duplicados ou não disponíveis na íntegra.
Resumos de conferências, editoriais e cartas ao editor.
Seleção dos estudos
1. Triagem inicial: Leitura dos títulos e resumos para identificar estudos potencialmente
relevantes.
2. Leitura completa: Avaliação detalhada dos artigos selecionados para confirmar a elegibilidade.
3. Extração de dados: Coleta de informações sobre mecanismos de interação
microbiota-imunidade, doenças autoimunes associadas e intervenções terapêuticas propostas.
Análise dos dados
Os dados foram sintetizados de forma qualitativa, agrupando os estudos por mecanismos envolvidos,
doenças autoimunes específicas e intervenções terapêuticas. Buscou-se identificar padrões e
contribuições significativas para o entendimento da relação entre microbiota intestinal e
autoimunidade.
RESULTADOS
1. Mecanismos de Interação entre Microbiota Intestinal e Sistema Imunológico
A microbiota intestinal exerce influência significativa sobre o sistema imunológico através de
múltiplos mecanismos. Belkaid e Hand (2014) descrevem como os microrganismos comensais
promovem a maturação do sistema imunológico e a manutenção da tolerância imunológica. A
interação com receptores do tipo Toll (TLRs) e a sinalização através do receptor de reconhecimento de
padrão (PRRs) resultam na modulação da resposta imune inata e adaptativa (ROUND; MAZMANIAN,
2009).
Arpaia et al. (2013) demonstraram que metabólitos produzidos por bactérias comensais, como os
ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), promovem a diferenciação de células T regulatórias no cólon,
contribuindo para a tolerância imunológica. Além disso, a microbiota influencia a produção de
citocinas e a ativação de células dendríticas, afetando a polarização das respostas Th1, Th2 e Th17
(BELKAID; HARRISON, 2017).
Alterações na composição da microbiota, ou disbiose, podem levar à quebra da tolerância
imunológica e ao desenvolvimento de autoimunidade. Cho e Blaser (2012) sugerem que a perda de
diversidade microbiana, frequentemente resultado do uso de antibióticos ou dietas ocidentais, está
associada ao aumento da incidência de doenças autoimunes. A disbiose pode resultar em aumento
de bactérias patobiontes que desencadeiam respostas inflamatórias exacerbadas (MANFREDO VIEIRA
et al., 2018).
Estudos em modelos animais mostraram que a translocação de bactérias ou seus componentes
através da barreira intestinal pode ativar células imunes periféricas, promovendo autoimunidade
(KOREN et al., 2012). Além disso, a mimetização molecular entre antígenos bacterianos e
autoantígenos humanos pode induzir respostas autoimunes (CLEMENTE et al., 2012).
2. Microbiota Intestinal em Doenças Autoimunes Específicas
Artrite Reumatoide
Pianta et al. (2017) identificaram a presença aumentada de Prevotella copri no intestino de pacientes
com artrite reumatoide, sugerindo sua participação na patogênese da doença. Maeda e Takeda (2017)
discutem como a disbiose intestinal pode influenciar a ativação de células T efetoras e a produção de
autoanticorpos, contribuindo para a inflamação articular.
Esclerose Múltipla
Berer et al. (2017) mostraram que a microbiota de pacientes com esclerose múltipla pode exacerbar
sintomas em modelos murinos, indicando um papel direto na modulação da doença. Alterações na
abundância de certas bactérias podem afetar a permeabilidade intestinal e a ativação de células T
autorreativas.
Diabetes Tipo 1
Knip e Siljander (2016) revisaram evidências de que mudanças na microbiota intestinal precedem o
desenvolvimento do diabetes tipo 1 em crianças geneticamente predispostas. A diminuição de
bactérias produtoras de AGCC e o aumento de espécies inflamatórias podem contribuir para a
destruição autoimune das células beta pancreáticas.
Doenças Inflamatórias Intestinais
Kostic, Xavier e Gevers (2014) destacam que alterações na microbiota estão associadas à doença de
Crohn e colite ulcerativa. A resposta imune inadequada aos microrganismos intestinais pode levar à
inflamação crônica característica dessas condições.
3. Intervenções Terapêuticas Direcionadas à Microbiota
Probióticos e Prebióticos
A administração de probióticos, microrganismos vivos que conferem benefícios à saúde, tem sido
explorada como estratégia para modular a microbiota. Estudos sugerem que probióticos podem
restaurar o equilíbrio microbiano e promover a tolerância imunológica (CLEMENTE et al., 2012).
Prebióticos, fibras não digeríveis que estimulam o crescimento de bactérias benéficas, também têm
mostrado efeitos positivos.
Transplante de Microbiota Fecal (TMF)
O TMF envolve a transferência de microbiota de um doador saudável para um receptor, visando
restabelecer a eubiose. Burrello et al. (2018) demonstraram que o TMF pode controlar a inflamação
intestinal através da indução de células produtoras de IL-10, uma citocina anti-inflamatória. Essa
abordagem tem potencial terapêutico em doenças autoimunes intestinais.
Modulação Dietética
Intervenções dietéticas que alteram a composição da microbiota têm sido propostas como estratégias
terapêuticas. Dietas ricas em fibras e pobres em gorduras saturadas podem promover a proliferação
de bactérias benéficas e a produção de AGCC, modulando respostas imunes (KOREN et al., 2012).
Antibióticos e Bacteriófagos
O uso seletivo de antibióticos para eliminar bactérias patogênicas específicas está sendo investigado.
No entanto, o risco de disbiose adicional e resistência bacteriana limita essa abordagem.
Bacteriófagos, vírus que infectam bactérias, representam uma alternativa para direcionar patógenos
específicos sem afetar a microbiota benéfica (MANFREDO VIEIRA et al., 2018).
4. Perspectivas Futuras e Desafios
A compreensão aprofundada da relação entre microbiota e autoimunidade abre caminho para o
desenvolvimento de terapias personalizadas. No entanto, a complexidade das interações microbianas
e a variabilidade individual da microbiota apresentam desafios significativos (BELKAID; HARRISON,
2017). Estudos longitudinais e ensaios clínicos robustos são necessários para validar intervenções
terapêuticas e determinar sua eficácia e segurança a longo prazo.
A manipulação genética de bactérias comensais para produzir moléculas terapêuticas é uma área
emergente. Além disso, a utilização de metabólitos bacterianos como agentes terapêuticos diretos
representa uma nova fronteira na medicina translacional (ARPAIA et al., 2013).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As evidências atuais reforçam a noção de que a microbiota intestinal desempenha um papel central
na modulação do sistema imunológico e no desenvolvimento de doenças autoimunes. A disbiose,
caracterizada por alterações na composição e função microbiana, está associada à ativação de
respostas imunes aberrantes que podem levar à autoimunidade (CHO; BLASER, 2012). Intervenções
que visam restaurar o equilíbrio microbiano apresentam potencial terapêutico significativo.
No entanto, a complexidade da microbiota e sua interação com o hospedeiro requerem abordagens
cuidadosas. Embora probióticos e prebióticos sejam promissores, os resultados clínicos têm sido
inconsistentes, possivelmente devido à variabilidade individual da microbiota e à falta de
padronização dos produtos utilizados (CLEMENTE et al., 2012). O transplante de microbiota fecal
demonstra eficácia em certas condições, mas questões de segurança e regulamentação ainda
precisam ser resolvidas (BURRELLO et al., 2018).
A modulação dietética oferece uma intervenção não invasiva para influenciar a microbiota, mas
requer adesão a longo prazo e pode ser afetada por fatores culturais e socioeconômicos (KOREN et
al., 2012). Estratégias que combinam abordagens dietéticas com outros tratamentos podem ser mais
eficazes.
Desafios persistem na tradução dos achados de pesquisa para a prática clínica. A identificação de
biomarcadores confiáveis para monitorar a microbiota e predizer respostas terapêuticas é essencial
(BELKAID; HARRISON, 2017). Além disso, a ética e a regulamentação de intervenções que envolvem
manipulação microbiana devem ser cuidadosamente consideradas.
A relação entre a microbiota intestinal e doenças autoimunes é um campo de pesquisa em rápida
expansão, com implicações significativas para a compreensão da patogênese e o desenvolvimento de
novas intervenções terapêuticas. Os mecanismos pelos quais a microbiota influencia o sistema
imunológico são complexos e multifacetados, envolvendo interações entre microrganismos, células
imunes e fatores ambientais.
Intervenções que visam modular a microbiota apresentam potencial para prevenir ou tratar doenças
autoimunes. No entanto, a aplicação clínica dessas estratégias requer uma compreensão mais
profunda das interações microbianas e estudos clínicos rigorosos para estabelecer sua eficácia e
segurança.
Futuras pesquisas devem focar na identificação de espécies bacterianas-chave, no desenvolvimento
de terapias personalizadas e na integração de abordagens multidisciplinares que considerem fatores
genéticos, ambientais e microbianos. A colaboração entre pesquisadores, clínicos e reguladores será
essencial para traduzir os avanços científicos em benefícios concretos para os pacientes.
REFERÊNCIAS
ARPAIA, N. et al. Metabolites produced by commensal bacteria promote peripheral
regulatory T-cell generation. Nature, v. 504, n. 7480, p. 451-455, 2013.
BELKAID, Y.; HAND, T. W. Role of the microbiota in immunity and inflammation. Cell, v. 157, n.
1, p. 121-141, 2014.
BELKAID, Y.; HARRISON, O. J. Homeostatic immunity and the microbiota. Immunity, v. 46, n. 4,
p. 562-576, 2017.
BERER, K. et al. Gut microbiota from multiple sclerosis patients modulate human T cells and
exacerbate symptoms in mouse models. Proceedings of the National Academy of Sciences, v.
114, n. 40, p. 10713-10718, 2017.
BURRELLO, C. et al. Therapeutic faecal microbiota transplantation controls intestinal
inflammation through IL10 secretion by immune cells. Nature Communications, v. 9, n. 1, p.
5184, 2018.
CHO, I.; BLASER, M. J. The human microbiome: at the interface of health and disease. Nature
Reviews Genetics, v. 13, n. 4, p. 260-270, 2012.
CLEMENTE, J. C. et al. The impact of the gut microbiota on human health: an integrative view.
Cell, v. 148, n. 6, p. 1258-1270, 2012.
KOREN, O. et al. Host remodeling of the gut microbiome and metabolic changes during
pregnancy. Cell, v. 150, n. 3, p. 470-480, 2012.
KNIP, M.; SILJANDER, H. The role of the intestinal microbiota in type 1 diabetes mellitus.
Nature Reviews Endocrinology, v. 12, n. 3, p. 154-167, 2016.
KOSTIC, A. D.; XAVIER, R. J.; GEVERS, D. The microbiome in inflammatory bowel disease:
current status and the future ahead. Gastroenterology, v. 146, n. 6, p. 1489-1499, 2014.
MAEDA, Y.; TAKEDA, K. Role of gut microbiota in rheumatoid arthritis. Journal of Clinical
Medicine, v. 6, n. 6, p. 60, 2017.
MANFREDO VIEIRA, S. et al. Translocation of a gut pathobiont drives autoimmunity in mice
and humans. Science, v. 359, n. 6380, p. 1156-1161, 2018.
PIANTA, A. et al. Evidence of the immune relevance of Prevotella copri, a gut microbe, in
patients with rheumatoid arthritis. Arthritis & Rheumatology, v. 69, n. 5, p. 964-975, 2017.
ROUND, J. L.; MAZMANIAN, S. K. The gut microbiota shapes intestinal immune responses
during health and disease. Nature Reviews Immunology, v. 9, n. 5, p. 313-323, 2009.
ZHANG, X. et al. The oral and gut microbiomes are perturbed in rheumatoid arthritis and
partly normalized after treatment. Nature Medicine, v. 21, n. 8, p. 895-905, 2015.